sábado, 14 de junho de 2008

Fim dos 15

Há muito tempo esse serzinho vingativo e maldoso vem penetrando minha mente com agulhas afiadas. Trazendo-me amargas recordações.

É uma qualquerzinha que causa barulho estridente em volta de meus ouvidos.
E um rangido seco e impiedoso sob as pontas de meus dedos.
Eu não sei se a conheço, ou se ela é só mais uma escondida nos espaços que carrego comigo.
Mas muitos podem conhecê-la, e ela pode ser muitos.
Ela tem esse poder...
Eu sei sobre ela o suficiente pra ela vir agonizando e perturbar minhas lembranças.
Mas hoje ela está em minhas mãos.

Ela, menina normalzinha, no auge de seus 15 anos.
Em sua vida, nada fora do comum (aparentemente).
Café da manhã, almoço e jantar em família. (E ela detestava)
Era uma estranha ali em volta daquele povo todo, feliz e perfeito.

Mochila...Livros...Escola...Colegas de classe e o Johnny.
Ahhhh o Johnny... João Francisco na verdade (mas ele detestava esse nome).
Ele era tão diferente dos outros, gostava de poesia, se amarrava nas tendências de moda, adorava dar dicas de beleza. Ele sabia tudo!
E os “amigos” diziam pra ela: “Esquece o Johnny, ele é gay”.
Quanta bobagem!
E ela não queria e nem precisava acreditar nisso...
Ele não... Ele seria dela um dia.
E as aulas de piano (ela odiava também).
Ela queria mesmo era tocar guitarra, sonhava em ser a guitarrista do The Corrs, aí sim a banda seria 100% feminina.
Nas sextas-feiras à noite, um cineminha com a “galera” do colégio, que nada sabia a seu respeito.
Nada demais. Aos olhos alheios uma vida normal.

Até se fechar em seu mundo, como fazia todas as noites. Em seus sonhos, era a mulher mais linda, mais magra, mais elegante, mais cobiçada do mundo. Sentia-se amada por todos inclusive pelos “pais”.
Tinha o Johnny, tocava guitarra, fazia o que tinha vontade, comia quem e o que bem queria (sem as críticas e os narizes tortos da família, falando que ela só comia porcaria), era livre por fora, do jeito que era por dentro.

Não sabia exatamente como aquilo começou.
Só lembrava de como era bom e como se sentia aliviada.
Chegou um tempo em que fazia três ou quatro vezes por dia.
“Que bom!”
Ninguém notava, ninguém sabia e isso era melhor ainda. Ela gostava de parecer santa.
Gostava de fazer tudo escondido. O proibido lhe fascinava.
Às vezes ficava tonta.
Mas era assim mesmo, era pra ser assim.
E todo mundo queria saber:
“Qual o segredo desse corpinho, sem uma gordurinha?”
Ela sorria triste e enigmaticamente.
“Babacas!” pensava.


Comia, comia de tudo e comia muito.
Comia pensando no Johnny, na guitarra roxa (que ela sonhava tanto), mas aquilo tudo era impossível.
Johnny não a queria como mulher, a guitarra não poderia combinar com os sonhos de seus pais e aquela comida toda a deixaria gorda demais... então com dedos criminosos na garganta ela tirava de si todo aquele pecado de pensamentos e “porcarias”.


E porque ninguém notava que por trás daquela magreza fantasmagórica, havia certamente algo de errado?
Porque todo mundo era tão ocupado? Porque ninguém perguntava?


Cada vez mais distante de suas expressões, seus pais lhe davam um “oi” apressado antes de mais um dia de trabalho.
E ela cada dia mais mergulhada em seu mundinho de guloseimas e vômitos.
Queria não existir... tinha que tentar desaparecer.


Um dia trancou-se no quarto e não quis mais ver ninguém.
Aí sim a notaram...
Chamaram...
Insistiram...
Mas ela só sabia-se ser um “não quero” ensaiadissímo meses antes.
Sim, tudo fora planejado minuciosamente.
Ela queria apenas o amor dos seus e não as migalhas e eles nunca percebiam, agora teriam que sofrer junto com ela.
Sozinha sem saber o que acontecia por dentro, apenas calou-se.
Dentro de suas veias, corria um sangue fraco e amargo.
Pegou um pedaço de papel qualquer e explicou-se pela primeira vez:

“Eu tentava controlar essa coisa no começo, só que agora não dá mais.
Eu não tento mais, eu não quero.
Eu preciso dela... Eu sou ela. Não tenho como me esconder.
É escuro onde quer que eu vá. As flores murcham se eu as toco. Tudo o que eu amo apodrece.
Não quero mais o Johnny, nem a guitarra. Só quero ficar quietinha de uma vez, e não dar explicações.
Quero apenas ficar calada pra sempre e não sentir esse cheiro insuportável do meu vômito impregnado em todo meu corpo... nem o odor dos pecados que cometo todos os dias.”


Pegou a mochila, entupida de sonhos, pulou a janela do próprio quarto e saiu feito criminosa sem ser (mais uma vez) percebida.
E quem mais a viu?
Ela não deixara rastros.
Sumiu feito pó.
Evaporou-se nas próprias entranhas.
Não tinha mais rosto, não tinha mais nome.
Finalmente tornara-se algo diferente do que era: resumira-se a nada.
Mas um nada que seguiu um caminho muito apropriado, a fuga.
Um caminho espinhoso pra seus ralos 15 anos.
Seguia-se o tempo inteiro.
Não a encontraram nunca mais.
Nem quando seu corpo extremamente oco definhara à beira de um precipício.
Ali esperaria sua sentença.
Ali não daria trabalho a ninguém, só tinha que tirar um pouco de coragem dos bolsos, uma gota de fé pra pedir perdão e jogar-se abismo adentro.
Ficou lá, de pé, imóvel, de braços abertos. Sentindo o medo ser parte dela mais uma vez.
Ficou em silêncio esperando que as asas dos Anjos soprassem ventos de salvação em sua face.
Olhando pra um horizonte em que só ela enxerga um ponto final, e lançando ao eco perguntas que ainda hoje pairam em minha cabeça:
“O que você está fazendo com seus filhos?”

“O que você está fazendo à você mesmo?”


(Por: Livia Queiroz)