domingo, 4 de outubro de 2015

Dedos apostos

Ela não consegue mais encontrar o caminho do poema
Nenhuma palavra aparece,
Nenhum som é encantadoramente interessante
Nem as mazelas da vida lhe são mais inspiradoras
Nem as paixões mais intensas
Nem a falta de rotina

Lá, no meio do mundo
O soneto se partiu ao meio
como que atravessado por um trem
como uma porcelana despencando da mão
como o pouco timbre dos que não existem...
E ela segue indignada pelo mundo
mas não lhe vem um verso
uma ousadia, uma ironia, um protesto
e por ora, ela segue procurando:

Olhos atentos,
boca entreaberta,
olfato preparado,
dedos apostos.

Mas, por enquanto,
Ela é só isso!


Por: Livia Queiroz

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Este ciclo

Existe uma coisa sobre a maneira de olhar pra vida que a gente só compreende quando acontece.
E essa "coisa no olhar" remodela a maneira de olhar de novo.
Por consequência muda-se o pensar e o pesar das coisas vistas.

Imagino que tudo começa e acaba da mesma maneira: quando se altera a forma de enxergar.

Não há muitos remédios para essa conclusão: Nenhuma casa permanece aberta para sempre.

A disponibilidade tem laços estreitos com a aperfeiçoamento do "olhar pras coisas". Os braços abertos só permanecem enquanto há o que se enxergar...

No mais, portas se fecham e peitos se rasgam.
Não há mácula nem medidas.  E segue-se o curso natural das outras coisas todas...

Por: Livia Queiroz

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Carta em Coma

Lá no baixo dessa colina há um poeta em coma. A sua casa está completamente cheia de afazeres domésticos e os e-mails se acumulam. Ora, essa! Essa criatura é imprescindível para o mundo, para as reuniões de trabalho, para as festas de aniversário dos filhos dos outros, para as duras críticas político-sociais. Ele precisa digitar o mais rápido possível para parecer sempre saber o que está fazendo em suas planilhas gigantescas. Ele precisa também sair à noite e ser visto para fazer “uma social”.  E na mesa dos bares que costuma frequentar com sua roupa bem passada, é proibido falar de mim, é que lá tudo é concreto demais para ser abstrato.

A cada dia que passa ele não entende o motivo pelo qual dentro de seu coração há uma bolha de ar. Pensa estar confuso, depressivo ou simplesmente triste, procura ajuda pra curar o que não está certo, e entre uma terapia e outra sorri mais aliviado com a esperança de que a viagem das férias prescritas, as gotinhas homeopáticas e os livros de autoajuda hão de funcionar com a velocidade das conexões tecnológicas. E aí o coma do poeta só aumenta porque não da pra ser duas coisas ao mesmo tempo, o poeta é um espírito aventureiro que pousa num corpo esperançoso de luz.

Daqui do alto, eu trabalho por conta própria, em meu nome e em nome de minhas irmãs, faço uns poucos versos de suplício enquanto observo o poeta lá em baixo se ligando à vida por um fio que a cada hora que passa fica mais fino. Oro com fervor. Creio eu, em todo poder da palavra, e é quase um crime hediondo ver poesias abafadas pelo caos que se instalou na rotina do mundo com total apoio e permissão de todos os homens.


Com desespero vital,
Poesia

27 de Abril de 2015

Por: Livia Queiroz