Uma das mãos treme e a outra segura uma pequena faca, pro caso de algum perigo se fazer surgir, e no fundo, ela sabe-se inofensiva.
Só pode estar doente.
Ela não!
A faca. A faca está doente.
Por algum motivo desconhecido, e esse motivo faz com que o objeto pontiagudo perfure do lado errado, mostrando-lhe um filete de sangue a escorrer sobre a palma sem forma de sua mão. É líquido e vermelho.
A outra mão, ainda trêmula, se fecha e um pouco de dor chega a ser sentida na ponta da língua.
Os olhos absorviam as cores do ambiente, sem nunca ter uma cor própria, e faziam um movimento milimetricamente planejado.
As gotas de sangue desenhavam no asfalto quente e cinza-sujo, as cenas no tempo do tempo. Eram como flashes, ou holofotes que acendiam e apagavam numa arritmia desconfortável.
A mente voltava à dias que se permitiu esquecer...
Lembrava-se detalhadamente:
“Abria o portão branco, sob as festas do vira-lata que adotara. Abaixou-se e o acarinhou. Percebeu o tom doloroso em seus olhos. A maquina de amar que nada pedia
Pegou as chaves, mas não precisou usá-las, a porta estava no trinco, certamente seu marido também havia chegado mais cedo do trabalho. Procurou na cozinha, na sala...
Ao passar pelo corredor que a levaria até o quarto, parou e viu o quadro que sempre esteve ali, mas ela nunca reparou muito. Isso a memória lembra cada detalhe:
Era uma menina sentada num balanço, com uma cesta de flores na mão, o quadro só podia ser um desses comprado em feirinhas de artesanato, os olhos da menina do quadro estavam frios, condenavam a observadora.
Na cestinha em suas mãos havia flores de todas as cores, mas tinha uma flor que havia murchado, por falta d'água talvez, ou falta de tinta.
A menina usava duas longas tranças que ficavam caídas sobre o peito e na ponta amarradas por um laço amarelo, como o seu vestido.
Por algum motivo, o pintor desse quadro deixou de pintar o dia, ou a noite...
Não havia uma paisagem atrás da menina. A pintura era das mais frias e sem vida.
Não havia beleza no rosto belo da menina.
Ela olhava a quadro distraidamente e quase, e por pouco não esquecera que estava à procura do marido.
Percebeu a movimentação no quarto, só podia ser ele.
Ensaiou o sorriso, cheio de todo amor, sim, porque o sorriso é a casca do sentimento. Descasca-se o sorriso e encontra o amor por dentro.
CONTINUA...
(Por: Livia Queiroz)