sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Alfredo


Alfredo mora la na rua com seu punhado de tralhas. Mora lá do outro lado, depois de onde dobra a esquina. Perto do lixo da rua, bem perto mesmo, é meio que inquilino, só sai pra trabalhar ou se banhar no riacho imundo do outro lado do bairro, quase na saída. 

No seu mundo de catação de latas e papelões, ratos e restos ele vive sem revolta, apesar de causar medo às vezes, mas não é culpa dele. Alfredo é bom menino, eu percebo, mas precisa se defender da crueldade do mundo, dos preconceitos da vizinhança que o repele sem que ele nada faça.

Alfredo rouba às vezes. Ele já me roubou uma sacola com algumas goiabas. Mas foi porque tinha fome. De pão e acalento. E já roubou algumas frutas, um pedaço de carne e – se não me falha a memória – levou alguns pertences meus. Mas tudo bem, não me serviam mais mesmo. Ele precisa de um banho, uma cama, uma boa noite de sonhos, exames de sangue, vitamina C e alguns fortificantes, que ele é muito magrinho. 

Há quem reclame! Dizem que ele anda armado. Ora, ele segura um bastão de ferro, mas é pra se defender. O coitado não ataca ninguém. Ele tem uma arma, sua única defesa por não ter tido um pai, uma mãe, uma boa escola e uma refeição digna. É sua arma dura, é dura, é arma, mas é por causa do medo. Ele tem tanto medo, e não sabe que tem, e não sabe do que, mas sabe que quando escurece e seus pelos se eriçam não é só por causa do frio. Ele tem medo porque os leões que ele enfrenta toda madrugada não vem fantasiados de metáforas. Os rugidos eu posso escutar aqui de casa. 

Ele tem medo. Mora ali do lado, e eu ás vezes o vejo chegar do trabalho, tirar o alimento machucado e velho da sacola de pano imunda, sentar na sua sala de estar de papelão e degustar o prato mais delicioso do mundo. Alfredo sabe o que faz. Às vezes me pergunto se ele chora, se sente saudade de algo, se ele já se acostumou com a vida. 

Uma vez o vi dormindo, parecia sorrir, gostaria de saber o que ele estava sonhando. Mas aposto que sonhava com a liberdade. A exaustão as vezes é percebida em seus olhos, ele trabalha muito e ganha pouco, mas não sabe disso. Acho que pensa que é tudo muito normal. Talvez seja ingênuo. Gostaria de perguntar, mas ele não permite muito contato, acha que querem roubar seu lixo, seu tesouro diário, empunha a barra de ferro e faz cara feia. Mas não ataca, ele é um doce. Ele não ataca ninguém!

Outro dia quis encostar, dizer um “oi”, essas coisas de vizinhos. Mas ele empunhou a arma dura, e foi direto ao ponto:
- O que quer?
- Só vim dar bom dia, Alfredo!
- Não me chamo Alfredo. – e deu as costas.

Pronto! Acabou com minha esperança de salva-lo. Por quem oraria agora se ele sequer me disse seu nome verdadeiro.? Gostei de inventar um nome pra ele, mas agora perdeu o encanto e não sei mais criar outro. 
Alfredo me atacou, me roubou e me matou!

domingo, 23 de setembro de 2012

En-Caderno


Ele, o sacro. O Sábio-Branco. De um branco amarelado que não é lacuna, nem ‘em branco’ e sim respiração suspensa como a que guardo nos dias em que os meios não justificam os fins. Ele: O guardador, o contentor do que não digo (e não digo o quê).
 
Ele, em sua sabedoria muda lança à minha cara milhões de verdades e mentiras e pede
explicações, emite sugestões. Incute pensamento. Exige movimento. E devolve o
que lhe digo, sempre em dobro (de dimensões e peso).
 
Outro dia me peguei em saia justa conversando com ele sobre uma insatisfação minha:
 
" – Pois, e não sabes que as pessoas mudam?  
– Sei!     
– Não sabes o que a distância faz com elas?    
– Sei – respondi – mas eu pensei que poderia ser diferente.           
– Não é! 
– É complicado.    
– Não é.   
– O que é então?  
– É simples: Quem se importa há de cuidar do que existe!”          

 

Calei.
 Ele possui a aspereza exata. A que não bane, mas a que ressalta a lógica.
 
 
"Sabe de uma coisa? Não deves cometer a tolice de acreditar em tudo o que lhe dizem. Pés  foram feitos para estar no chão. Assim como promessas cheias de cor são feitas só porque serão quebradas. Não é culpa das promessas. A culpa é das cores!"

 
Emudeço. E não há nada ainda posto sobre ele. Não há nada demais.
 Ele é como um cômodo vazio que pensa cheio...
 
"Depois de tanto tempo a ausência se torna presença constante (um paradoxo não?) e aí fica muito parecida com uma filha da vizinha que de tão próxima já vira melhor amiga sem precisar de conquista, já é parte da casa e até parece combinar com a mobília. Não é da família, nem da casa, mas é como se fosse. A ausência, com o tempo fica assim e para melhor suportá-la, a apelidamos de não-presença que é pra ver se dói menos. Pedimos ao destino, aos amigos, ao espelho pra ‘deixa pra lá’ que é pra ver se faz menos efeito. E depois – aos poucos – não é que vai mesmo doendo menos?"

 
 Ele é cheio de degraus, possui etapas e conhecê-lo exige um procedimento. Há uma raridade em sua postura: a transparência. E há ainda a inocência e a serenidade que ficam pelas bordas... Ele é inevitavelmente um amigo silencioso
 
"Vão passar pela vida tantas pessoas boas, tantas ruins. Mas isso de ser bom ou ruim é relativo. O regular mesmo é ser imparcial, mas acaba sendo melhor ser justo. Se não quiser o bem também não queira o mal. Fique fria. Permaneça fina. Fique lúdica. Posta à prova e sempre pronta. O bom mesmo é não exigir, por que cansa e além disso o que está pra ser sempre é, sem regras impostas e sim intrínsecas."
 
 
 
Eu não me atrevo a argumentar e chego a questionar se são devaneios essas coisas que percebo dele, mas tão acurácicas que são, me recuso a impor limites e travas nesse linguajar de poesia e cuidado.

“Há um motivo pra tudo. Ou vários. Optar por esse ou aquele destino não tem a ver com escolhas, mas sim com necessidade. O melhor é saber por onde começar e já que um caminho pode ter várias entradas e saídas o ideal é levar consigo um mapa. E saber quando é a hora de partir. Partir dói quando há raízes, mas é necessário completar o dinamismo da vida. Renovar as energias. Modificar. Compartilhar.”

Eu sei de uma coisa: ele possui uma vantagem sobre mim... Se ele se perguntar "quem sou eu?" terá por certo uma resposta. Quanto a mim, viraria partículas de rebarbas antes de repetir a pergunta só para não respondê-la.

Acho que ele é um sábio refúgio, um modelo do que não consigo seguir. Algumas coisas melhorariam-me por certo. Eu não quero manchar um papel com essas coisas que sinto, prefiro ouvir dele, que em branco, me comove enchendo meus olhos de lágrimas e invocando minha serenidade.

“Sabe, ela vai fazer muita falta. Você vai sentir o coração apertar, depois pesar, depois doer. Talvez um dia passe. Mas enquanto não passa o melhor mesmo é você conseguir conviver com a sensação doída. Afinal, o melhor é deixar que nasçam por si só as borboletas. Arrebentar casulos é um atentado contra a ordem natural das coisas, e a ordem natural diz que pra se fazer sarar há de se fazer doer.  Pois então, deixe ir, deixe passar, não se entreponha entre o ‘que já foi e e não é mais’. Vamos lá, supere! Get Over! Cabeça erguida e deixe de drama que o mundo é único demais pras seus apelos.”

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A mulher sem costume

Por hora ela apenas tem polido as cascas
E só!
Conserva-se sem olhos
Seios, e sem fé.

Inócua!

E há de chegar o dia
em que implodirá.
Não precisa deixar marcas
Nem abalos.

Ela é císmica,
Cósmica,
Sínica,
Sátira e
Púrpura.

E merece partir ao meio.
É sempre denso porque ela é assim:
Mórbida e sem estilo.
Ela merece morrer na palavra.
Na palavra Císmica,
Na palavra Cósmica,
Na palavra Sínica,
Na palavra Sátira e
Na palavra Púrpura.

Está tudo muito denso.
E seria bom pra todos
se ela partisse ao meio
e por inteiro.

Por: Livia Queiroz