sábado, 31 de dezembro de 2011

Túnel de Tempo

Ao meu Avô Jaime Queiroz.

Por tudo que ele representa no que, só depois de algum tempo, eu aprendi a definir como vida.

Antes eu não era exatamente feliz.

Mas não era um “não exatamente feliz” com essas definições prontinhas e soltas por aí. Era um entorno singular...

Eu colecionava solidão, mas sem nenhuma tristeza por isso, sem dor ou reclamação, e hoje sei que o fazia apenas com poesia. Antes – que só agora começo a me recordar – eu fazia versos em recortes de revista, em almanaques, em álbuns de figurinhas... E fazia uns poetiscos – que é como eu chamo os meus poemas pequenos da infância – fazia poetiscos de cabeça, jurando que no dia seguinte ainda me lembraria dele e escreveria. Mas eu ainda nem sabia escrever e o único poetisco que me lembro foi um que eu nem fiz... O do dia que eu vi, pela primeira vez, o girassol (que sempre esteve ali) de minha vó:

- Um Girassol! – exclamei.
- É. Bonito né? – disse minha avó – Mas não pode mexer senão ele não vai conseguir mais enxergar o Sol.

Lembro-me que depois disso, meus olhos se encheram d’água. Eu pensei:

“Que Triste!
Gostar tanto do Sol
e ficar olhando pra ele o dia todo.
O Sol queima os olhos.
Isso é muito triste.
Eu nunca ia gostar tanto assim.”

Pode não parecer, mas havia entre eu, minha avó, meus olhos com lágrimas e o Girassol, uma poesia pronta para brotar. Uma angústia linda perpassou o meu peito, eu lembro como se fosse hoje. E nem as palmeiras, nem as florzinhas, nem as outras plantinhas do pequeno jardim de minha avó me causaram tanta curiosidade. E acho que, por causa disso, e por não ter encontrado uma resposta em poesia, Girassóis me emocionam até hoje.

Eu não tive o que se pode chamar de momento único. Todos foram antes. Não tive um tempo de criança exatamente feliz, nem exatamente triste: corri, caí, dancei, inventei, e até hoje tenho o meu avô... E até hoje o cheiro do colo dele é o mesmo cheiro que sinto quando salta, de trás da porta do meu “todo eu de hoje”, o tal do bichinho em larva de codinome saudade. E foi o meu avô que me ensinou sem usar palavra nenhuma quantos tons a vida possui, sobretudo, nos fins de tarde dos domingos.

Um dia, ainda na parte menor da vida, percebi que quando chovia o meu peito apertava e eu me sentia adequadamente pequena e descontente com algo que eu julgava ser culpa do Girassol. Imaginava que talvez ele o Sol tivessem brigado, e esse segundo decidira “dar um tempo”. Ou quem sabe o Sol estivesse de “saco cheio” de ser espiado por milhões de Girassóis em todo canto. Meu coração ficava espremidinho e cheio de dor quando chovia e a única coisa que queria era a minha cama. Só, muito tempo depois, eu descobri que eu não era a única a caçar esconderijo quando vinha chuva, e aprendi também (com meu avô e o cheiro do colo dele) que a chuva servia.

Para mim, todas as chuvas... Todas as quedas... Todas as correrias... As travessuras... E os tempos no colo de meu avô me mostraram um poema que eu jamais conseguirei sequer rabiscar. Esse poema está dentro de mim agora enquanto escrevo tudo isso e ele deixa que meus olhos se molhem e vez ou outra eu solte um riso de canto de boca e um suspiro em verso para diminuir a frustração por não conseguir escrevê-lo e para confirmar a não exata felicidade que vivi naquele tempo. Todos esses “coloridos retalhos”, são, na minha memória, os que mais se repetem.

Antes eu não era exatamente nada. Mas não com um sentido pejorativo. Eu não era nada, porque eu não conhecia direito a mania de definição ensinada pelos adultos. Essa mania e necessidade de se definir algo para que, esse algo, possa ser classificado e disposto junto dos seus similares. Não entendia de logística de sentimentos ainda. E acho que foi por isso que durante anos, muitos anos, os sentimentos, os pensamentos, as minhas impressões de mundo não foram batizados e ficaram todos juntos no cômodo único construído displicentemente por dentro da casa “eu”.

É! Um só cômodo para todos, e eles se entendiam muito bem.

Até que o monstrinho traiçoeiro da idade me viesse ocupar a mente e com a mania compulsiva de organização, confundisse tudo (às vezes acho que minha idade sofre de Transtorno Obsessivo Compulsivo, com a mania de definição, e arrumação. Ora, nem tudo precisa ser tão certinho!).

Eu copiava...
Via meu avô fumar e queria também... Via a minha tia beijar o namorado e também queria beijá-lo... Imitava os passos de dança... As obrigações domésticas... As brigas... Imitava Tudo. Não fui exatamente infeliz por isso. Tive ótimas referências.

No colo de vô, eu escutava Cartola, Nelson Gonçalves, Pixinguinha e ganhei as poesias de Castro Alves antes mesmo de eu saber do Navio Negreiro.
Meu Avô é um poema todo por si só – e sem precisar de definição.

No meu tempo, eu não era exatamente triste, ou feliz, ou eufórica... nada disso... Eu era podada como as plantas que ocupam muito espaço.
Mas, no fim das contas, eu não tinha uma definição daquele estágio presente.


(Por: Livia Queiroz)

Escrito em 22/08/2011