sábado, 18 de abril de 2009

Engasgada (Parte II)


Uma das mãos treme e a outra segura uma pequena faca, pro caso de algum perigo se fazer surgir, e no fundo, ela sabe-se inofensiva.

Só pode estar doente.

Ela não!

A faca. A faca está doente.

Por algum motivo desconhecido, e esse motivo faz com que o objeto pontiagudo perfure do lado errado, mostrando-lhe um filete de sangue a escorrer sobre a palma sem forma de sua mão. É líquido e vermelho.

A outra mão, ainda trêmula, se fecha e um pouco de dor chega a ser sentida na ponta da língua.

Os olhos absorviam as cores do ambiente, sem nunca ter uma cor própria, e faziam um movimento milimetricamente planejado.

As gotas de sangue desenhavam no asfalto quente e cinza-sujo, as cenas no tempo do tempo. Eram como flashes, ou holofotes que acendiam e apagavam numa arritmia desconfortável.

A mente voltava à dias que se permitiu esquecer...


Lembrava-se detalhadamente:


“Abria o portão branco, sob as festas do vira-lata que adotara. Abaixou-se e o acarinhou. Percebeu o tom doloroso em seus olhos. A maquina de amar que nada pedia em troca. A companhia que nenhum problema causava.

Pegou as chaves, mas não precisou usá-las, a porta estava no trinco, certamente seu marido também havia chegado mais cedo do trabalho. Procurou na cozinha, na sala...

Ao passar pelo corredor que a levaria até o quarto, parou e viu o quadro que sempre esteve ali, mas ela nunca reparou muito. Isso a memória lembra cada detalhe:

Era uma menina sentada num balanço, com uma cesta de flores na mão, o quadro só podia ser um desses comprado em feirinhas de artesanato, os olhos da menina do quadro estavam frios, condenavam a observadora.

Na cestinha em suas mãos havia flores de todas as cores, mas tinha uma flor que havia murchado, por falta d'água talvez, ou falta de tinta.

A menina usava duas longas tranças que ficavam caídas sobre o peito e na ponta amarradas por um laço amarelo, como o seu vestido.

Por algum motivo, o pintor desse quadro deixou de pintar o dia, ou a noite...

Não havia uma paisagem atrás da menina. A pintura era das mais frias e sem vida.

Não havia beleza no rosto belo da menina.

Ela olhava a quadro distraidamente e quase, e por pouco não esquecera que estava à procura do marido.

Percebeu a movimentação no quarto, só podia ser ele.

Ensaiou o sorriso, cheio de todo amor, sim, porque o sorriso é a casca do sentimento. Descasca-se o sorriso e encontra o amor por dentro.

Abriu a porta do quarto e ficou parada ...



CONTINUA...



(Por: Livia Queiroz)